As preocupações com a pandemia na Terra Indígena Raposa Serra do Sol
Por Jean-Claude Bafutanga Anizeledi
A pandemia de coronavírus veio num momento inesperado para o mundo inteiro. Ninguém se preparou adequadamente para combater de maneire eficiente essa doença. A pandemia nos obrigou a mudar a rotina e os hábitos o que atrapalha todo o mundo inclusivo os povos indígenas de Roraima no norte do Brasil onde me encontro.
Vale ressaltar que o novo coronavírus, a Covid-19 pertence à uma família de vírus que causa infecções respiratórias. Apareceu na China em dezembro de 2019 onde foram registrados os primeiros casos. Desde então, a doença se espalhou pelo mundo passando pela Europa até chegar nas comunidades dos povos indígenas da Amazônia e no interior de Roraima.
BRASIL: EPICENTRO DA PANDEMIA
Estamos no mês de junho e os números de casos confirmados no Continente americano e em alguns países da África continuam subindo. Na América Latia, o Brasil virou o epicentro da pandemia com mais de 800 mil casos e 40 mil mortos até o momento (11/06/2020). O vírus se espalhou em todos os estados chegando rapidamente nas comunidades indígenas. No Estado de Roraima, os primeiros casos foram confirmados na segunda metade do mês de março e obrigou a adotar novas medidas de prevenção como, o distanciamento e isolamento social, quarentena, uso de máscaras, higienização com álcool em gel, entre outras, para evitar a propagação da doença. Infelizmente os casos não pararam de aumentar justamente devido à falta de isolamento social. Segundo o Boletim Epidemiológico do governo (roraimacontraocorona.rr.gov.br), no dia 11/06/2020, Roraima registra 6712 casos confirmados; 219 internados, 1752 recuperados, 281 altas hospitalares e 192 óbitos. Esse quadro nos deixa preocupado principalmente com os indígenas.
CORONAVÍRUS NAS COMUNIDADES INDÍGENAS
Embora a pandemia em Roraima atinja mais a capital Boa Vista, foram também notificados muitos casos nos outros municípios: Uiramutã, Normandia, Pacaraima, São Gabriel Cachoeira dos Yanomami, etc, onde residem principalmente os povos indígenas. Desde que surgiram os primeiros casos em Boa Vista, os indígenas, assustados, procuraram proteger suas comunidades.
É importante sublinhar que a organização nas comunidades indígenas faz parte dos seus valores culturais. Em cada comunidade existe uma equipe de coordenação que organiza os trabalhos e orienta os moradores. O Tuxaua é o primeiro líder. Dependendo da situação pode haver também, o vice Tuxaua. Tem ainda, o Vaqueiro que cuida do gado da comunidade e os capatazes que organizam os trabalhos.
Existe ainda, o Agente Indígena da Saúde (AIS) e o Agente Indígenas de Saneamento (AISAN). Essa é uma forma de organização típica dos povos Indígenas de Roraima, base para guiar a comunidade e enfrentar qualquer tipo de problema.
MEDIDAS DE PROTEÇÃO
Com a chegada do coronavírus, as comunidades se mobilizaram com a liderança dos Tuxauas juntamente com o Grupo de Proteção e Vigilância do Território Indígena (GPVTI) criando um laço forte para enfrentar a pandemia. Fizeram barreiras nas entradas e rodovias que dão acesso às comunidades indígenas para fiscalizar as entradas e saídas, reforçaram as medidas de higienização, isolamento social e quarentena, diminuindo o risco de contágios. Suspenderam as reuniões e encontros, as celebrações da palavra, os cultos e as aulas presenciais nas escolas. Para salvar o ano letivo, a Secretário da Educação adotou o sistema de aulas à distância aonde os professores vão entregando apontamentos das aulas aos alunos nas comunidades. Algumas comunidades indígenas foram além disso e criaram o sistema de caixa comum. Somente alguns saem para fazer compras dos alimentos e cestas básicas para toda a comunidade evitando movimentos. Foram adotadas várias outras medidas para evitar os contágios, mas infelizmente não foram suficientes.
INDÍGENAS VÍTIMAS DA COVID-19
Hoje muitos indígenas de Roraima estão com a Covid-19, alguns são assintomáticos, outros apresentam sintomas claros e estão sofrendo e procurando atendimento de saúde. Alguns já foram a óbito. A primeira vítima indígena foi um jovem Yanomami que contraiu a doença não se sabe como e infelizmente veio a falecer no Hospital Geral de Boa Vista. Depois dele, começaram a falecer outros jovens e adultos. A maioria das vítimas são professores indígenas. Embora as aulas não sejam presenciais, os professores vão às comunidades entregar materiais sem equipamentos de proteção individual, sem usar máscaras e álcool em gel para se higienizar as mãos. Esse sistema educacional foi denunciado através de um vídeo publicado pelo coordenador geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), o senhor Enock Barroso Tenente
Foi também revelado por outro líder indígena da etnia Wapixana, Mario Nicasso, ex-coordenador do CIR, num artigo onde ele afirma que “os indígenas são vítimas quando saem das suas comunidades para ir às vilas e cidades para comprar alimentação e também quando vão sacar o dinheiro do auxílio emergencial proposto pelo governo”.
O Estado de Roraima no momento tem um único Hospital Geral que atende a todos, inclusive os indígenas. O Hospital de Campanha especializado em tratamento da Covid – 19, ainda não está pronto. O sistema de saúde está sobrecarregado e em colapso. As pessoas correm risco de se contaminarem também no Hospital.
Tenho acompanhado o caso de um indígena da Região Baixo Cotingo, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, onde trabalho, que foi acompanhar seu parente com outra doença no Hospital Geral de Boa Vista. O parente ficou curado e ele que o acompanhava contraiu o coronavírus. Sem saber, ele levou a doença para a sua comunidade. Graças a Deus que já se recuperou.
O número de contágios nas comunidades indígenas de Roraima continua subindo. O coronavírus trouxe muitos desafios para os povos indígenas como também para outros moradores de Roraima. Impede os indígenas de seguir seus costumes como as reuniões, encontros, trabalhos comunitários, orações, festas onde partilhavam o “caxiri”, “pajuaru” e “damoridha” (bebidas e comidas tradicionais). É muito difícil para eles respeitar o isolamento social pois não faz parte dos seus costumes.
FUNERAIS SEM RITUAIS
Outro desafio é a realização de funerais dos indígenas, vítimas da Covid-19. O ritual cultural indígena da morte é sagrado e muito rico, onde se chora pela pessoa falecida antes que todos os parentes e familiares de outras aldeias cheguem. Com as normas de restrições por causa da pandemia, esse importante ritual do enterro dos indígenas sofreu uma violenta mudança, pois os membros da família dos falecidos não podem participar. Pior ainda são os casos dos indígenas removidos para Boa Visto com sintomas de coronavírus. Os que morrem no Hospital Geral, não podem ser velados nem transladados para as comunidades. O corpo é enterrado na cidade mesmo, no cemitério reservado para as vítimas da Covid-19. Isso aumenta a dor e a tristeza da família que perde seu parente e não pode fazer uma despedir digna conforme os costumes da cultura.
Além desses e outros desafios, o que nos preocupa é a dificuldade de frear os contágios nas comunidades indígenas. Isso será muito difícil enquanto não forem resolvidos os problemas da alimentação, do atendimento à saúde e educação dos indígenas.
* Pe. Jean-Claude Bafutanga Anizeledi, IMC, Região Baixo Cotingo na TIRSS, Roraima.